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segunda-feira, 27 de abril de 2020

Parto Normal do Isolamento

Ator e sua Verdade 2020| Lisi Chaulet
Sérgio Azevedo Fotos

Tenho duas filhas. Ambas vieram de cesária por escolha minha. Desde que comecei o isolamento há exatos 38 dias, tenho enfrentando o parto normal do Covid. No início as contrações foram espaçadas e eu conseguia apenas com a respiração contornar as supostas dores. Agora, elas estão com intervalos curtos, quase sem interrupções e até mesmo respirar tornou-se difícil, exige uma concentração absurda. É preciso nascer, ou melhor renascer no meio deste cenário pavoroso. Renascer é mais doloroso que nascer, porque a impressão que tenho é como se tivéssemos saído da placenta, espiado para fora da barriga e percebido que ainda não era hora, que dava para esperar. Agora não dá para esperar! É preciso sair, e talvez sejamos tirados a ferro, com muita dificuldade. Se reinventar? Como? Como? Como?
Comecei a fazer o exercício dos momentos da minha vida que "saí da placenta" mas não cortei  o cordão umbilical. Já tive que me reinventar várias vezes na vida, e nenhuma foi fácil. Nenhuma! Aos 8 anos, tive que morar com minha avó e só via meus pais fim de semana, porque meu pai foi transferido pelo trabalho. Eu lembro desse ano como se fosse hoje, era difícil ficar longe deles, era difícil me adaptar, lembro que nesta época um bicho mordeu meu olho e ele inchou e fechou, a cena que me vem é eu sentada na frente do espelho observando meu olho e chorando porque ninguém sabia que "bicho tinha me picado". Lembro depois de um episódio na escola com uns 10 anos, quando sumiram canetas e fui acusada de roubo. Fui chamada na secretaria e chorava, porque não tinha sido eu. As malditas canetas apareceram na lixeira da sala (quem roubou devolveu) e eu na vida, nunca tive coragem depois disso de pegar um chiclé ou qualquer coisa na vida. Até na casa da minha mãe que tenho chave, quando preciso de algo, aviso ela antes que vou lá pegar algo X (ela ri e diz que não preciso avisar...mas eu não consigo). Adolescência marcada por dificuldade extrema de me relacionar com meu pai. Eu não fui nunca o que ele queria que eu fosse de certa forma, mas não fui nem perto de uma adolescente problemática. Não usei drogas (como muitos já pensaram), não engravidei cedo (como muitos pensavam), não vivia bêbada e promíscua (eu acho que não...kkkk) tudo porque logo cedo  o teatro e a escrita entraram e atropelaram positivamente a minha vida. Eles sempre me salvaram do pior de mim e do mundo. Em 2010 um dos momentos mais pesados e sérios de reinvenção profissional, onde todos que trabalhavam comigo partiram, não tive escolha e forçosamente tive que me reinventar (daí veio a troca do nome "Grupo Artigos" para Cia Lisi Berti me apropriando do meu nome, surgiu o primeiro livro com as minhas peças e surgiu a minha pesquisa do Ator e sua Verdade que me acompanha com muito sucesso até hoje). Em 2015 vivendo uma suposta e incrível história de amor, fiquei um ano tentando engravidar da minha filha Helena, quando desisti consegui, e para minha surpresa lá estava eu grávida, construíndo minha casa e sozinha, o mundo caia na minha cabeça pois a pessoa que eu achava que conhecia, tinha outra mulher que também estava grávida, entre mil e outras histórias que nem vale a pena lembrar. Meu coração se despedaçava e em nenhum momento passou sequer pela minha cabeça (como também já me falaram não ter Helena). Eu lembro  que decidi que meu fundo do poço tinha uma mola, desceria mas subiria com impulso e mais uma vez o teatro foi meu melhor amigo. Trabalhei todos os dias até a meia noite do dia que antecedeu o parto. Ganhei minha filha sozinha, quem segurou minha mão foi minha madrinha já falecida e fiquei num quarto com mais três mulheres e seus esposos  que me olhavam e eu podia ver no olho a pergunta "onde está o pai?". Com toda a força para surpresa delas, no outro dia fui sozinha ao banheiro e uma delas me perguntou como eu conseguia com aquela dor insuportável, eu lembro que calmamente respondi que a mente comandava o corpo. Quem me visitou foram alguns colegas de teatro e lembro quando dois atores do korvatunturi (Pedro e Guigo) foram na minha cama, me abraçaram e desejaram só coisas incríveis. Ríamos e ali soube que com Helena tudo seria diferente mas sempre com muito amor. Saí do hospital incrivelmente bem e "trabalhada na autoconfiança", ainda com os pontos da cesária já dirigia e me virava, porque TUDO era comigo, eu só tinha eu mesma para cuidar da minha filha. Me reconstruí, renasci mais uma vez e apesar de toda a dor, uma nova Lisi renasceu com a Helena.
Este ano de 2020 havia começado incrível. Muito trabalho, muitas pessoas maravilhosas próximas, projetos e um suposto novo amor no ar, preenchendo meu coração já calejado. Filha mais velha em intercâmbio tornando-se uma grande mulher, o perdão e o reencontro com pai da Helena em fevereiro, onde tive a certeza que não sinto mais nada, nem raiva, nem ódio, nem rancor, nem amor. Zerei. Zeramos. Agora é ele com ela, e o entendimento dele disso, apesar de difícil está apenas começando e pelo que vi, será bem mais doloroso que o meu. Março chegou e os rumores de um vírus na China, de repente um áudio da filha na Dinamarca dizendo "mãe é sério, estamos comprando comida e entrando em quarentena aos prantos." De repente todos os eventos, apresentações treinamentos e aulas foram canceladas. Ruas desertas e isolamento. Oi? Fechada dentro de casa com Helena no auge da sua adrenalina, uma cachorra, dois gatos e mil pensamentos. Adaptação. Nos adaptamos bem até final de março. Havia esperança de que não, não pode ser assim tão grave isso...
Notícias de amigos de teatro da Itália, Equador, Peru, Colômbia, Espanha chegavam e sim, era mais grave a catastrófico do que pensava. O mundo parou! O vírus nos pegou de calças na mão, nem deu tempo de correr (até porque não se pode sair de casa).E sinto que é hora de renascer, não consigo esperar para ver o que virá, preciso emergir do caos e buscar soluções para minha vida profissional, financeira, social e SAIR DA PLACENTA CORTANDO O CORDÃO UMBILICAL. Mais uma vez o teatro está comigo, me apoiando e preciso fazer mais do que nunca que ele chegue nas pessoas tristes, deprimidas, amedrontadas. Decidi postar poemas, fazer contos na rádio...agora decidi me reinventar com um seleto grupo de amigos para ações a curto prazo que renda a nós pelo menos pagamentos de boletos. Nossa área foi super afetada e não sei quando poderemos ter  o contato. Teatro é a arte do encontro, do afeto, do contato. Não poder estar no palco, dando aula e fazendo o que amo tem sido muito doloroso mas, fui indo para outras áreas que não pensava como da locução comercial, aulas online, escrita. 
Não tenho medo porque na minha vida, graças a deus, nunca tive que me reinventar e renascer depois de uma doença ou um acidente grave (talvez passe por isso ainda). Tenho saúde, mas não tem como não pensar por exemplo em uma das pessoas especiais que está na minha vida e que sofreu um grave acidente, onde tudo teve que ser repensado, adaptado até porque ele teve uma perna amputada. Eu sempre me coloco no lugar dele e penso como ele conseguiu sobreviver a isso, a essa nova vida, ao afastamento das pessoas que se diziam amigas, adaptações físicas, emocionais...haja cabeça, haja força, haja psicológico. Conversamos muito sobre isso, e ele só é quem é, com esse coração generoso e alma nobre justamente pelo enfrentamento, parto normal o dele com sérias complicações. A vida falou mais alto, uma nova chance. E ele, do jeito dele, agarrou, lutou, sofreu, venceu, vence a cada dia quando não se entrega. As marcas no rosto que eu chamo de história e ele de rugas, deixaram ele mais forte, com mais hombridade e simplicidade. Bingo!  Como agradeço ter ele agora, segurando minha mão. Tem sido incrível!
Eu decidi que vou renascer, cansei já do marasmo, das "férias forçadas", não parei de produzir mas podia ter produzido bem mais. Tive preguiça, medo, raiva, ansiedade, comi, chorei, comi, dancei, tomei café como se não houvesse amanhã. Fiz coisas novas, descartei velhas. Percebi quem segura minha mão de verdade e quem finge que segura por conveniência. Nunca essa gestação foi tão louca, adversa, incrivelmente esclarecedora. Cada vez que duvidei o Universo me mandou um pequeno sinal, que soou como uma bofetada para eu aprender a não desacreditar. Nasci. Chorei. Berros! 
Quantos partos ainda terei na vida? Não sei, mas sei que terei. Não acaba aqui. Cada recomeço tem um ponto de início e fim. Aprendi com os outros trabalhos de parto. Aprendi com as minhas dores, não tenho vergonha alguma de falar delas, são minhas aliadas e justamente elas que me fizeram ter ideias incríveis que logo saberão para sair da minha crise e pagar meus boletos (porque o príncipe dos boletos é lento, tem a torre dele, o médico dele e está isolado comendo salmão e tomando chandon. Ele é tão, mas tão arrogante e chato que jamais teria um homem assim ou esperaria por um para estar ao meu lado). Meu tempo é precioso, raro e não vou dividi-lo com qualquer babaca que aparecer, até porque tive alguns aí na vida que SE-NHOR... deu né! Agrega ou me erra! Simples. Sem escândalo, viro as costas e sigo meu rumo. Isso eu sei fazer desde sempre e com elegância. (Lembra da minha saída triunfal do hospital lá no parágrafo de cima?).
Acompanho os noticiários do vírus aqui no RS, no Brasil e mundo. O cenário ainda é ruim, bem ruim. Acompanho nossa crise politica e econômica, que tem nos deixado perplexos e confusos. Calma. Não deixem o cordão umbilical enrolar no pescoço. Não sufoquem. É tudo que eles querem. Que nem tenhamos a chance de renascer. Eu decidi nascer com força total. Um rebento ! Rebento e arrebentando o mundo com o que sei fazer: lidar com pessoas, emoções , dores fazendo TEATRO do meu jeito.
Parto! Parto normal! 
Lisiane Berti, 27 de abril de 2020. Renasceu às 11h23min. (perto do almoço...kkkkkk)

Sérgio Azevedo Fotos
Eu fazendo o que mais amo...